22.10.07






Na Estrada


De manhã bem cedo, o dia ainda sem acordar.
E eu, olhando o vale, fitando as nuvens
Que pararam para descansar.

4.5.07



Voando em torno da lâmpada.


Eu aqui, às nove da noite, tocando violão para uma mariposa. E me pergunto qual de nós está mais sozinho. A mariposa tem a noite, com suas infinitas estrelas. Eu, o violão e a música, com suas mil canções - mas que eu só sei tocar meia dúzia. A mariposa não tem como se dar conta do infinito que a cerca. Mas disso eu não tenho certeza. Não posso ter certeza também se a ignorância é uma desvantagem. Mas não é por isso que eu acho que ela ainda leva a melhor: enquanto eu presumo compartilhar ao mesmo tempo da noite, da música e de sua inusitada companhia, a mariposa ignora o som, a minha preocupação, e talvez também a noite com suas possibilidades. Aliás, se existem possibilidades para ela, são apenas duas: ser ou não ser devorada. Isso a obriga a viver no limite. É a fórmula dos românticos para uma vida perfeita. Ou para uma morte perfeita. A comida tem mais sabor, o vôo tem mais prazer. Neste sentido, a mariposa tem uma larga vantagem. Para ela, esta noite é tudo; para mim, é mais uma noite em meio a tantas outras. Sua ignorância a torna plena, enquanto a minha consciência só me recorda da minha finitude. Pego o violão e dedico a isto uma das minhas seis canções. À finitude, então. E à mariposa.

Fevereiro de 2005

3.5.07



Acompanhamento.


Em 1979, houve um incêndio na enoteca da escola de sommeliers de Bordeaux, matando um grupo de estudantes aplicados e inutilizando boa parte do acervo de brancos. Uma grosseria, segundo os especialistas, uma vez que churrasco é carne, e, portanto, um tinto seria o mais indicado.

Janeiro de 2005


Nobres intenções.


Édipo era um homem bonito. Aliás, muito bonito. Mas, a despeito da legião de mulheres belíssimas ao seu encalço, Édipo continuava sozinho. Porque acreditava que, se tudo na vida tem um propósito, sua beleza também o teria. Então, imbuído de um sentimento de caridade pouco comum aos homens com sua aparência, fundou a Confraria de São Jorge, destinada a levar alegria a todas as mulheres feias que encontrasse.Se dependesse dele, dragão nenhum ficaria sem seu príncipe. Pelo menos uma bitoca.

Fevereiro de 2005

5.4.07



Adeus, Margarida.


Todos os dias, depois da natação. Meu restaurante preferido. Meu refúgio.

Das mesas azuis com flores amarelas sob os tampos de vidro, ao lado dos postais do mundo inteiro e fotos antigas. Da eterna Bossa Nova tocando baixinho. Das paredes e prateleiras cobertas de miudezas de olhar devagar, lembrando, lembrando.

Das comidinhas cheirosas e saudáveis recendendo a coisa gostosa de fazer o corpo sorrir.

Da proprietária sempre alegre, espalhando doçura sem escolher a quem: todo mundo tem direito a um sorriso, de onde quer que venha.

O Margarida se vai, e eu vou junto, impressionado por realizar o quanto eu gostava de estar lá, mesmo que fosse naquele momento fugaz e corrido da hora do almoço. Maravilhado por perceber como ele entrou, sub-reptício, nos meus dias, na minha vida.

Agora a flor está fechada. Mas suas raízes estão entranhadas no que eu sou, e seu perfume, marcado para sempre na minha memória.

7.3.07



Legado.

Plante uma árvore em meu nome.
Deixe que o carvalho rompa a semente. Deixe que a promessa se cumpra em suas folhas. Deixe que seus galhos apontem o céu, rendendo graças a um milagre sem nome.
Que o que eu fui será o vento que agita os galhos, a dança calma de silêncio e êxtase. Cortado o silêncio pelo barulho das folhas. Podado o êxtase pela presença do homem.
Deixe que a raiz se espalhe em meu nome, virando em força a terra que a prende. Que mais fundo se entranhe para beber do mundo, mas que a sede aplacada faça a planta crescer para mais longe.
Raízes aéreas.
Que a terra é o chão, mas só a folha se alimenta de luz.

27.2.07



O relógio de sol.


Um relógio de sol é uma varanda imprecisa para o tempo. As horas se medem nas sombras. O dia, pelo brilho que se alcança. A velocidade da luz é de um dia por vez, preocupada menos em correr do que em mostrar. A agulha imóvel aponta para cima e para o norte – e o universo se move à sua volta.

Penso se não somos como relógios de sol.

Que passar pela vida é olhar as sombras avançarem e encolherem lentamente. Que o resultado de uma vida também é o brilho que se alcança. Não para o mundo que nos olha pelo que temos, mas para quem nos percebe e nos acolhe na memória. Como a agulha do relógio, apontamos para o alto – e o universo nos empurra para cima. Em direção à luz.


Eu levo minha música para todos os lugares. E vice-versa.

Comprei um daqueles tocadores de MP3.
Escuto no ônibus, no tempo morto que eu usava para ler e que agora não posso mais, sob pena de descolar a retina.
Perdi um hábito, ganhei outro.
Agora eu vou escutando todas aquelas músicas que nunca tive tempo, entulhadas no computador ou em CDs esquecidos.
E que delícia é ir vendo a paisagem mudar na janela, ao som tipicamente brasileiro do Jorge Ben, ainda mais Ben que Benjor. Os carros passando no ritmo dos Chili Peppers. As pessoas alheias à sutileza da vida, transitando na preguiça apaixonante da Lounge Music.
Que eu me seguro para não cantar. Que eu me contenho para não dançar no meio da rua. Que eu levo uma alegria comigo, bem grudada aos ouvidos.
Meu dia, agora, tem trilha sonora.

22.1.07



Acordo de cavalheiros.


O meu esporte é a natação.
E sempre que a piscina está muito cheia, é comum eu dividir a raia com mais alguém.
Pois bem.
Tem um senhor lá que costuma dividir a raia comigo. Tem uns 70 anos, mas não aparenta mais que 60.
E adora disputar comigo.
Antes que vocês formulem qualquer juízo de valor, eu adianto: o velhinho é um páreo duríssimo.
Nós temos praticamente a mesma altura e o mesmo peso.
Ele, entrado em anos, mas nadador de longa data, usa pés-de-pato para ganhar vigor. Eu, fora de forma, com um ano e meio de sedentarismo, vou sem equipamentos.
Qualquer juiz afirmaria que estamos em igualdade de condições.
E todos os dias, das 12:30 às 13:20, travamos nossa batalha, um verdadeiro acordo de cavalheiros.
Tácito, sem palavras.Às vezes é ele quem vence, às vezes sou eu. Nenhum dos dois comemora ou desfaz do outro.
No silêncio sob a água, entendi que, mais importante que dar o melhor de si, é o respeito.