26.12.06



Procurando.


Deixei de ser pai,
parei de ser irmão.
Não sou mais marido,
e em breve,
em breve não serei mais filho.

O que resta de mim?
De quem vou cuidar?
Para quem serei porto?
Onde fica o meu abrigo?

Já que todos se vão,
partirei também.
Como a ilha do Saramago,
à procura de mim mesmo.

15.12.06



Borgeando.


Naquele conto de Borges, o mago sonha um homem inteiro até que ele vire realidade, apenas para que seja consumido pelas chamas irreais de um sacrifício inimigo. Então o mago vai em resgate de sua criação, apenas para descobrir ser ele mesmo irreal, e que outro o havia sonhado.

Alguém deve ter sonhado você, criada, engendrada pétala por pétala, para ser caçadora de sorrisos pelo mundo. Que onde você está, você os descobre, faz aparecer. Que sorriso algum se esconde na sua presença, que o riso vem fácil quando você sorri.

Você não existe, está acima disso.

Você se esconde nas dobras dos meus pensamentos antes de dormir, mas não nos meus sonhos, porque, mesmo que você não apareça nos braços de Morfeu ou brincando com suas areias, eu sempre acordo com a sensação gostosa de ter te abraçado. Acordo com o corpo quente e confortado, a carne ainda duvidando se houve contato. Mas alma, a alma cheia de certeza.

7.12.06



Migrânea.



Um grande sinal de que as coisas não estão indo tão bem é quando você começa a desejar que os dias passem depressa. Você já acorda querendo que o dia acabe, que o tempo voe, que o mês passe, para... para quê? Para que parem de ser tão rápidos e possamos nos dar um descanso.

Descanso. É uma palavra pecaminosa hoje, quase uma heresia, falar em descanso quando a armadilha do estresse nos diz que estar angustiado é o mesmo que estar produzindo. E produzir, todos concordam, é a palavra de ordem. Então, vamos nos estressar, ao menos para parecer que estamos criando algo, gerando negócios, aumentando margens de lucro, atendendo mais pacientes, julgando mais causas, descobrindo curas.

Transformamos o mundo num lugar em que ser temperamental e brusco é ser normal, uma reação em cadeia de brutalidade maquiada do que chamamos de realidade. Onde estar relaxado é um absurdo e, vamos admitir, um verdadeiro trabalho de Hércules. Nos estressamos para ir à banca da esquina, por causa do trânsito que quase nos mata diariamente, por causa dos assaltos, por causa do vizinho mal-educado que não abriu a porta nem deu bom-dia, preocupado ele próprio e estressado com suas coisas, suas cobranças, seus papéis.

Nos estressamos porque não damos conta de cuidar da casa, do trabalho, das crianças e ainda arrumar tempo para ser gente e lembrar de ter algum alívio.

Aliás, a diversão também é estressante: quem vai à praia no final de semana tem que acordar mais cedo para não pegar engarrafamento - mas não adianta -, não acha estacionamento, e quando acha, invariavelmente existe um guardador que cobra os olhos da cara para não arranhar o seu carro, tem as crianças gritando no banco de trás, tem o não achar lugar para sentar na areia, nem nas barracas, tem aqueles cidadãos que insistem que seu gosto musical é o melhor do mundo e tocam suas preferidas a pleno volume, tem a areia do frescobol respingando no bronzeado alheio. Admitimos que isso é descanso, voltamos para casa com a ilusão de que o final de semana foi relaxante. E abraçamos o cotidiano da semana com redobrado desconforto.

É aí que os dias tendem a ser iguais. Uma sucessão de igualdades, como naquelas grades com barras que cercam os prédios de hoje, cada barra igualzinha à outra. Diversão de menino é andar depressa, bem perto, olhando para elas, vendo elas passarem rápido, tremeluzentes, como nos filmes em preto e branco do início do século passado. Assim são os dias, passam depressa, e a gente mal os enxerga, em permanente movimento.

Mas isso cansa. E, lá pelo final do ano, a gente fica desejando que tudo isso acabe logo, para termos a chance, aproveitando a aura de recomeço do reveillon, de dar um boot na nossa vida, apertar o reset – e seja o que Deus quiser.

O erro é esperar. Um ano é um giro da Terra ao redor do sol. Um dia é um rodopio dela sobre si mesma. Rotas elipsóides ou circulares não têm começo nem fim, qualquer lugar é um início. 1o de abril, 1o de julho, 9 de janeiro, tanto faz. O importante é o marco, uma mudança sutil ou uma machadada no cotidiano, não faz diferença. Pequenas ou grandes, mudanças nos fazem exercitar aquilo que nos ajuda a nos distanciarmos dos animais: a criatividade. E isto, meus caros amigos, é estar vivo.

Agora, com licença: vocês, eu não sei, mas EU estou indo almoçar na beira da praia.

17.10.06


Brincadeira.
para Maísa



Outro dia eu vi uma criança na janela de um carro, usando uma daquelas máscaras que têm uns óculos, nariz falso e bigode.
Eu nunca mais tinha visto dessas máscaras.
E a criança ria, deliciada com a brincadeira, olhando para mim, cúmplice.
Como se dissesse "eu sei que você sabe que este rosto não sou eu".
Lembrei de você.
Porque, com você, eu sou com uma criança olhando o mundo, feliz apenas por estar ali. Porque, quando caírem todas as máscaras, é com você que eu quero estar. E porque eu e você somos todos crianças, que sabem que a máscara é apenas uma brincadeira, uma doce brincadeira.
E rimos disso, gostosamente.

6.10.06




Sobre um vôo.


Amanheci pensando em dentes-de-leão.
Aquelas florzinhas que quase não se vêem de tão leves, que balançam, balançam no vento, até que se soltam, para onde a vida manda.
Semente, semear.
Que o vento não é mau, é só o beijo leve que faz a gente acordar.
Que nos faz largar do que sabemos e nos mostra a nossa verdadeira natureza sem peso, que nos leva longe, longe, para fazer o que viemos.
Semente, semear.
Que pessoas são brisas, que nos sopram para longe, enquanto nos agarramos firmemente aos galhos, pobres flores.
Que não notamos que o nosso destino é voar...

28.9.06


Cheiro no chão.


Flores emborcadas no asfalto. Jasmins de pétalas abertas beijando o chão dos homens. O jasmineiro triste de chuva, fitando desolado seu tesouro conspurcado. Olhando para baixo, debruçado. Falido.

Quando a natureza derruba a si mesma é o quê?
Mas não é isso.

Eu penso na chuva abençoando a redenção. No jasmineiro perfumando o caminho dos carros, na suave reverência à cidade que os abraça. O respeito de uma troca, minhas flores pelo teu espaço. Que não há mendicância quando a gente doa.

Que todo gesto humilde também é de grandiosidade.
Pausa para sentir o perfume.

29.8.06


Vende-se Licor de Cachoeira.


Eu vi escrito na frente de uma casa. Que sabor será que tem? Licor de cachoeira deve ter gosto de coisa fresca, de matar a sede e o calor, do vento frio que sopra na beira, molhado e puro feito criança no banho. Deve ter gosto de pedras redondas na beira da língua, estalante e barulhento ao descer, rolando para dentro das profundezas de mim mesmo. E por ser licor, deve ter guardado lá no final uma surpresa, aquele torpor do álcool ou dos dias de muito sol, não sei. De dar vontade de sonhar ou dormir, ou mergulhar e ser líquido, fluido, perene, imortal. Licor de cachoeira deve ter gosto de liberdade.

Aí lembrei. Cachoeira é uma cidade. E o licor é de lá. Cidade pequena, brejeira e faceira do chão de pedras redondas, fluindo em ruas e gentes e quietude no meio do mato. Cidade com gosto de liberdade, então o meu sonho ainda vale.

31.7.06


Olhando para cima.


Hoje eu vi uns móveis amarrados num caminhão de mudança.
Bem no meio, um espelho grande refletia as nuvens.
Hoje eu vi um caminhão lembrando as pessoas de olhar para o alto.
Eu vi um motorista levando o céu para passear.

6.6.06


Microverso


Debaixo da folha tem uma sombra verde
Que vira os grãos de areia em pequenas esmeraldas
Feliz é a formiga que carrega este milagre
Tingindo de esperança o dia das operárias.

5.6.06



Aquele dia no Paraíso


- Eu não sei o que está acontecendo com o Adão, Serpente. Tem seis dias que ele não me procura. Eu não sei mais o que faço.
- Ô, Eva, seis dias não é tanto tempo assim...
- Sem televisão? É uma eternidade! Amante, eu sei que ele não tem. Deus não faria isso comigo. Além do mais, eu já contei as costelas do Adão. Nenhuma faltando.
- Será estresse? Deus deu aquele trabalho todo pra ele...
- Dar nome às coisas? E isso lá é trabalho? Passa o dia inteiro só olhando em volta e viajando na maionese. Olha pra cima, e diz: “céu”. Pronto, tá nomeado. Olha pra baixo e diz: “chão”. Maior moleza.
- Não fala em moleza, que atrai.
- É. E tudo com uma sílaba só: cão, lã, flor, mar. Parece que tem preguiça de falar.
- E Deus criou o surfista. Sóóóóó...
- E o tempo que ele demora pra inventar essas coisas? Senta, come uma fruta, conversa com o cão, dá uma caminhada, cochila e, láááá no final do dia, olha pra baixo e diz: “pé”. Faz aquela cara de “dever cumprido”, volta pra casa e dorme.
- E Deus criou o funcionário público.
- Ele diz que é para explorar todas as possibilidades da língua. Queria eu que ele usasse mais a língua comigo.
- Calma, Eva. Tenha paciência com ele. Vocês são tão felizes juntos, formam um casal tão bonito... foram feitos um para o outro.
- Literalmente, aliás.
- E você é linda, Eva, a mulher mais linda do mundo!
- Eu sou a única, Serpente.
- Por isso mesmo. Ninguém de olho no teu macho, olha só que maravilha.
- Mas também ninguém mais para fofocar.
- Hum, talvez seja isso. O Adão também não tem amigos. Ninguém pra fazer farra, contar piada suja, ninguém pra contar que está comendo a gostosa do pedaço.
- E com você, ele não conversa?
- Que nada. Acha que ficar falando com cobra alheia pega mal pra ele...
- Eu me sinto tão sozinha, serpente... não posso nem voltar para a casa da minha mãe. Nem tenho mãe.
- Graças a Deus. Já pensou, Adão com sogra? Duas jararacas no Paraíso, eu não ia agüentar a concorrência.
- Você está do lado dele!
- Que é isso, Eva, não chore... toma, come uma maçã.
- Não quero. Se não fosse essa maçã, eu não estava com esse problema. Não saberia nem o que é isso. Quem precisa de maçã é ele...
- E o anjo Gabriel?
- Já falei com ele, pedi conselho. Mas anjo não tem sexo, não entende patavina dessas coisas. Aquela espada de fogo dele não é de nada. E mais, o cara vive de camisola pra cima e pra baixo! Ninguém é mais coluna do meio do que ele. Um desperdício.
- É, querida, então você vai ter que botar a mão na massa.
- Deus já fez isso. E caprichou no Adão, é isso que dá mais saudade. Ele merece o ão no fim do nome...
- Então capricha na produção, Evinha. Toma um banho, esfrega umas flores na pele, enfeita o cabelo, come uma fruta cheirosa pra melhorar o hálito. Come a maçã pra dar um upgrade na libido, bota o diabo no corpo e vai à luta.
- Então eu vou lá é agora!
- Eva.
- Que é?
- Deixa a folhinha.

31.5.06


Rios Imaginários


Nas horas em que o pensamento escoa
A razão dissolve e a fantasia transborda
Eu sou como um barco à deriva
Pairando, flutuando, navegando
De volta, de volta ao seu abraço.