11.12.09


Para sempre.


De todas as coisas que vivemos juntos, o que eu mais gosto de lembrar não é a primeira vez que eu te vi. Não é o primeiro beijo. Nem a noite em que saímos do carro para tomar chuva. Nem a que passamos inteira conversando e lendo trechos de livros.

A minha lembrança preferida é de muito depois. O dia em que nos reencontramos, depois de três meses separados.

Lembro do quão perdido eu me sentia quando estava só e as memórias de tudo o que somos um para o outro iam se desvanecendo lentamente. Lembro daquele vago desespero que sentia em ver tanta coisa linda neste mundo e não ter ao meu lado a pessoa simplesmente perfeita para compartilhar.

Lembro de ter visto pela primeira vez a neve cair, e misturada à alegria infantil veio a tristeza de não ter você para dividir o segredo. Um frio na alma, desrespeitando todos os meus agasalhos.

Naquele dia, entendi que não podia mais ficar sem você.

No momento em que nos reencontramos, lembro que pensei: graças a Deus, ela ainda está aqui. Lembro que te apertava contra o peito, agradecido pela certeza de que você ainda estava no meu mundo, que não era tarde demais, que eu teria você de volta. Minha expressão era de alívio.

Naquela noite, entendi que era para sempre.

Naquela noite, não queríamos mais nos despedir.

A alegria era como a de uma criança pequena quando encontra outra, que corre para ver de perto aquele rosto tão sorridente quanto o dela. Feliz, feliz, feliz de dividir tudo quanto sabe, tudo quanto é, tudo quanto entende deste mundo tão vasto e tão virgem dos seus olhares e descobertas. Da criança que ri de volta para os pais, como se dissesse: Olha, mãe, ela é igual a mim.

Hoje, mesmo dividindo os dias e as cores e os potes de sorvete, ainda confiro sua presença ao meu lado todas as noites, antes de dormir. Só para ter certeza de que você está mesmo ali.

26.11.09




Sobre prédios.
Para Maísa


Gosto de prédios em construção. Principalmente daqueles que já estão perto da fase de acabamento, cobertos com aquela rede de proteção.

Porque para mim, a malha que envolve o prédio é como um cobertor, aquecendo os sonhos dos futuros moradores. Translúcida, deixa entrever na imaginação as histórias que serão vividas, a paixão do casal, a correria dos filhos. Cada conquista, cada realização, ali, encubada, casulo de vidas e todas as memórias.

Um prédio novo é todas as esperanças de quem vai morar nele. Um novo começo – embrulhado para presente.

13.11.09



Livre Associação.


Meu pensamento é tão mais rápido que a minha fala, que quando a mente viaja, a voz já desiste da disputa e emudece. Os olhos se esquecem de ver e os ouvidos, de ouvir, enquanto eu viajo todos os anos-luz das minhas memórias, deduções, conclusões, revelações.

O pensamento me rouba do mundo, e enquanto singra o oceano do que eu sou, agita as águas do inconsciente e atrai o que habita nas profundezas.

Meu pensamento é como uma dama na chuva, pulando por entre as poças e fazendo um caminho, onde o que importa não é o destino, mas o movimento. De uma lembrança, eu salto para outra, misturo e recrio, e se algo acontece e destoa a atenção, a mente rebate e toma outro rumo, bilhar das circunstâncias.

Embalagem não retornável de algo muito maior do que a mera humanidade, minha mente segue, não em frente, mas em todas as direções. Imitando o universo, meu pensamento se expande eternamente. Até que eu seja mais que um homem, e o raciocínio seja apenas uma das coisas que um Deus pode conceber.

Porque o pensamento, o pensamento é tão infinito, que limita. E tão infinito, que também liberta.

6.10.09



A moça feia.

Cantando no coro da igrejinha do subúrbio. Feia à segunda vista, mas somente à segunda. Porque aquela moça tinha algo mais, saltando aos olhos logo de cara, tão forte e tão intenso que se antecipava a qualquer julgamento.

O mendigo e seu cachorro sentados no chão da calçada. Olhando o céu azul e sem nuvens que se abria atrás do muro do quartel. O cachorro não tinha um porquê além de uma vaga lealdade. Mas o homem, o homem tinha algo mais. Tão forte e tão intenso que me fez parar o caminho do dia e observar.

Qualquer lugar é perfeito quando se fita o nada ou o infinito. O coral da igrejinha ou o chão duro da calçada. Com os olhos fechados ao som de uma música, ou com os olhos vidrados no mais absurdo silêncio.

Porque preencher-se de algo é desprover-se de outras coisas. Abrir mão de todo o resto. Porque a penúria da carne abre espaço para o espírito. Porque a feiúra é também uma forma de privação.

Mas, cá comigo, eu desconfio: na calçada ou na igreja, eles não precisavam de mais nada. Estavam absolutamente completos.

29.9.09



Meu som.


Beethoven, já completamente surdo, encostava o rosto no piano para sentir a vibração das notas. Em cada nota, um leve tremor, um arremedo da música, que ele sorvia avidamente. Criando o som a partir do nada.

Eu tenho surdez moderada no ouvido esquerdo desde os sete anos. Não atendia o telefone desse lado, e quando sentava ao lado de alguém, era sempre procurando uma posição estratégica. Pequenos gestos para escutar o mundo. Como fazia o Beethoven.

Uma vida de incompletude forjada para ser inteira.

Quando fiz trinta anos, comecei a usar aparelho, sob pena de ficar surdo de uma vez. Devolvi o meu silêncio aos deuses e emergi para o som do mar ao longe, do vento nas árvores e da voz ao telefone. Agradeci pelo riso das crianças que me chegava pela janela, abençoei cada sussurro na voz da esposa, cada leve respiração. Eu agora era inteiro sem forjas, sem metáforas, sem estratégias.

Ouvi, ouvi, ouvi, até entender que no mundo já existe mais barulho que música. Mais máquinas que córregos, mais buzinas que pássaros, mais gritos que canções.

Então o aparelho apita três vezes, indicando que a bateria acabou. Bip, bip, bip. Aos poucos, os sons vão esmaecendo ao meu redor. Mergulho lentamente de volta ao meu silêncio. E fechando os olhos, não leio os lábios, deixo o mundo balbuciar coisas incompreensíveis.
Quando cessa o barulho, escuto mais a mim mesmo.

Ouvir não é mais uma incapacidade ou um inevitável, agora é uma questão de escolha. E é este poder que me faz sentir mais inteiro.

9.9.09




Neblina.


Certa vez, viajávamos em meio àquela imensa neblina. Não enxergávamos nada além de uns poucos metros à frente, o mundo desaparecia a poucos metros atrás. Éramos nós, a neblina e o vazio. Fiquei pensando se não era assim que a vida devia ser: não observe o que passou, não se preocupe com o que vem muito adiante. Preocupe-se apenas com o presente, talvez o próximo passo. Tudo mais é névoa, não existimos para muito além do agora. O importante é continuar.

Hoje o dia amanheceu com um presente. Acordei com o barulho da chuva, mas o dia estava claro. Com um sol generoso a ceder espaço para as gotas que não podiam mais esperar. Sol e chuva: casamento das raposas, como dizem. Nem bons, nem maus, sol e chuva vêm ao mesmo tempo para lembrar que, quando tudo acontece de uma vez só, é hora de mudar. De produzir algo novo. Não é à toa que os arco-íris só aparecem em dias assim.

Saí de casa com a sensação de ter entendido algo difícil e importante. De aprender para crescer, mudar, construir. Se não o mundo, a mim mesmo. Sem me preocupar com o tempo que isso leve, o que aconteceu, ou o que está por vir.

E tenho certeza: naquela hora, em algum lugar, havia uma raposa dizendo sim.