29.9.09



Meu som.


Beethoven, já completamente surdo, encostava o rosto no piano para sentir a vibração das notas. Em cada nota, um leve tremor, um arremedo da música, que ele sorvia avidamente. Criando o som a partir do nada.

Eu tenho surdez moderada no ouvido esquerdo desde os sete anos. Não atendia o telefone desse lado, e quando sentava ao lado de alguém, era sempre procurando uma posição estratégica. Pequenos gestos para escutar o mundo. Como fazia o Beethoven.

Uma vida de incompletude forjada para ser inteira.

Quando fiz trinta anos, comecei a usar aparelho, sob pena de ficar surdo de uma vez. Devolvi o meu silêncio aos deuses e emergi para o som do mar ao longe, do vento nas árvores e da voz ao telefone. Agradeci pelo riso das crianças que me chegava pela janela, abençoei cada sussurro na voz da esposa, cada leve respiração. Eu agora era inteiro sem forjas, sem metáforas, sem estratégias.

Ouvi, ouvi, ouvi, até entender que no mundo já existe mais barulho que música. Mais máquinas que córregos, mais buzinas que pássaros, mais gritos que canções.

Então o aparelho apita três vezes, indicando que a bateria acabou. Bip, bip, bip. Aos poucos, os sons vão esmaecendo ao meu redor. Mergulho lentamente de volta ao meu silêncio. E fechando os olhos, não leio os lábios, deixo o mundo balbuciar coisas incompreensíveis.
Quando cessa o barulho, escuto mais a mim mesmo.

Ouvir não é mais uma incapacidade ou um inevitável, agora é uma questão de escolha. E é este poder que me faz sentir mais inteiro.

9.9.09




Neblina.


Certa vez, viajávamos em meio àquela imensa neblina. Não enxergávamos nada além de uns poucos metros à frente, o mundo desaparecia a poucos metros atrás. Éramos nós, a neblina e o vazio. Fiquei pensando se não era assim que a vida devia ser: não observe o que passou, não se preocupe com o que vem muito adiante. Preocupe-se apenas com o presente, talvez o próximo passo. Tudo mais é névoa, não existimos para muito além do agora. O importante é continuar.

Hoje o dia amanheceu com um presente. Acordei com o barulho da chuva, mas o dia estava claro. Com um sol generoso a ceder espaço para as gotas que não podiam mais esperar. Sol e chuva: casamento das raposas, como dizem. Nem bons, nem maus, sol e chuva vêm ao mesmo tempo para lembrar que, quando tudo acontece de uma vez só, é hora de mudar. De produzir algo novo. Não é à toa que os arco-íris só aparecem em dias assim.

Saí de casa com a sensação de ter entendido algo difícil e importante. De aprender para crescer, mudar, construir. Se não o mundo, a mim mesmo. Sem me preocupar com o tempo que isso leve, o que aconteceu, ou o que está por vir.

E tenho certeza: naquela hora, em algum lugar, havia uma raposa dizendo sim.