18.12.08



Aprendiz.

As cordas do violão são como serpentes entre meus dedos. Rebelam-se e escapam primeiro às tarraxas, depois aos pinos. Impaciente eu torço o aço, como se a música se dobrasse mais fácil quanto maior a violência. Trocar as cordas deveria ser mais fácil, e talvez o seja para qualquer violonista. A imperícia me nega qualquer prazer.

Ao aprendiz, o primeiro desafio é conhecer o instrumento. As cordas escapam e me ferem, a ponta que espeta é a defesa ao carinho canhestro da minha inexperiência. Como os espinhos, a indocilidade é natural contra a agressão.

Aqui existe algo que preciso entender.

Talvez a doçura seja mais indicada, e a melodia flua para fora do bojo se eu cercar o violão com cuidados de flor. Então trago o braço para perto dos olhos, bafejo as tarraxas com o meu sopro de vida e o aço se encaixa gentilmente. Empurro a outra ponta sob o pino com o polegar, a digital preenche aquele futuro com a minha marca pessoal. Afino a corda devagar, alinhando meus barulhos com a minha dissonância. Até que entre um som e outro só reste silêncio.

Aprendi. Então eu sou e ressôo, orgulhoso, em Mi maior.

5.11.08



Duas esperas.

Todas as manhãs, eu passo por um grupo de pescadores. Quase sempre, estão tratando o produto de seu trabalho. Aos pés deles, seis ou oito gatos de rua que tiraram a sorte grande: uma fonte eterna de peixes fresquinhos. Os bichanos esperam pacientemente o trabalho terminar, porque sabem que existe ali um peixe inteirinho só para eles, sempre tem. E os carinhos, as brincadeiras desajeitadas, a cumplicidade perfeita da relação perfeita: alimento para o corpo dos gatos, alimento para a alma dos homens. Num dia em que passei mais cedo, vi os gatos perfilados, olhando fixamente para o mar: os barcos dos pescadores ainda não tinham chegado. Perguntei-me se este ritual não acontece todos os dias.

Todas as noites, em pé no ônibus, eu olho para as pessoas sentadas. Trabalhadores voltando para o subúrbio. Quase todos dormindo, esgotados do dia. Os que não dormem, sustentam para a janela um olhar perdido. Para a vida ou para o nada, não sei.

Eu olho as pessoas e as igrejas. Incrível a quantidade de templos protestantes na periferia, no caminho para casa eu vejo mais de quinze. Onde a vida é mais dura, é preciso mais fé.

Católicos e protestantes concordam que a morte é como um sono à espera do julgamento. Da salvação dos justos. As pessoas do ônibus, as mesmas que não perdem o culto por nada no final de semana, não dormem jamais. Fiéis, ouvem as promessas de vida eterna e sustentam sua dignidade como podem. E na volta do ônibus, ensaiam de olhos fechados, aguardando o momento exato de saciarem sua fome de justiça, de paz, de afeto.

Como gatos à espera do pescador.

20.8.08



Deus ex machina.

Eu li pintado no alto de uma porta de metal: Ministério Celular Universal. Tive dúvida se era uma loja de assistência técnica ou uma igreja.
Se for uma assistência técnica, imagino as razões por que alguém colocaria um nome assim. Ministério Celular Universal é um bom nome. Soa vagamente protestante, com todas as infinitas vertentes e discordâncias, ministérios, renasceres e universais. Com a profusão de igrejinhas e fiéis em cada canto da cidade, é muito comum ver farmácias São Jorge, padarias Jesus Cristo é o Senhor, mercadinhos Caminho do Louvor.
A fé traz sorte nos negócios. Especialmente se o público é evangélico.
Se o nome da assistência técnica não traduz a crença do proprietário, pelo menos mostra uma profunda identificação com seus clientes, todos com seus telefones que tocam o último sucesso gospel a cada chamada.
Mas Ministério Celular Universal também pode ser o nome de uma igrejinha mesmo.
Celular seria no sentido de célula mesmo, unidade, já que o salão é pequeno e a idéia seria encorajar grupos reduzidos de oração.
Tomara que seja isso.
Porque Ministério Celular Universal também me intriga por outra razão. Os celulares hoje são as máquinas que mantemos mais próximas de nós. Carregamo-los dia a dia, aconchegados junto ao coração no bolso do paletó ou da camisa, vigiando nossa fertilidade no bolso da calça, conferindo nossos documentos na bolsa. Pior: sobre o criado-mudo na hora de dormir, ao lado do porta-retratos.
Ministério Celular Universal nos fala da lembrança de Deus, naquela passagem que nos lembra que Ele está presente mesmo nos pequenos grupos, nucleares, celulares.
Mas também – ai dos duplos sentidos – nos lembra do quanto nos entregamos aos desejos mundanos, o telefone mais moderno, o mais bonito. Lembra da onipresença matemática que nos rouba a privacidade a cada toque. Lembra do medo que temos de perder o celular e ficarmos perdidos, incomunicáveis e sem agenda num mundo mais e mais dependente desses aparelhinhos. Deus ex machina, Deus é máquina, a falsa dualidade desvia nossos olhares do essencial e nos criva de necessidades irreais, desejos superficiais, caprichos de inverdades.
Ministério Celular Universal, finalmente, é um divertido paradoxo. Fala do contato mais íntimo com a divindade através de um grupo pequeno de pessoas. E, ao mesmo tempo, do distanciamento de Deus num mundo infestado por máquinas.
Dá vontade de jogar o celular pela janela.

27.5.08


Kundalini.

Eu gosto desta foto.

Por causa das cores e dos contrastes. O azul do céu, o vermelho do calção, o negro da pele. O menino estava fazendo arte, no sentido figurado; sem saber, acabou fazendo arte, no literal.

Gosto da foto porque vermelho é a cor do primeiro chakra, o da base da coluna vertebral. É o mais ligado às coisas da terra, e onde começa a nossa jornada espiritual. Crescer espiritualmente é também fazer com que a nossa energia vital circule para os chakras superiores, os da cabeça, mais ligados ao plano imaterial. Na foto, o chakra vermelho é jogado para cima, em direção ao céu. É como se o homem, sempre apressado, colocasse o carro à frente dos bois e dissesse “olha, Deus, aqui o que eu sou, me leva para perto de ti”. Correndo desembestado antes de ter o conhecimento, como fazem as crianças. Levando a energia para o alto como se espera, mas não como se deve. O menino olha para baixo não para saber onde cair, mas em despedida, Adeus, Terra, vou para junto de meu Pai. Ou talvez saiba mesmo a dureza do chão que o aguarda. Ainda assim, é um bom começo. Todos os vôos começam na vontade.

Eu também gosto dessa foto porque crianças são simplesmente impossíveis.
Tem coisa mais estripulia do que um guri de cabeça para baixo?
Eu não conheço.




*Em tempo: a foto foi tirada pelos alunos de fotografia da ONG Cipó Comunicação Interativa, projeto Oi Kabum Escola de Arte e Tecnologia. Foi num passeio pelo subúrbio ferroviário de Salvador-BA. Talentosos, os meninos...


8.4.08


Volta de bicicleta.

Borboletas e flores.
Todas amarelas.
No campo, de vasto,
quem vê, se confunde.
Borboletas criam raízes,
e flores ganham os céus.

31.3.08


Autofagias.


Outro dia, uma amiga me contou ter sonhado com um rato feito de queijo, sendo perseguido por um gato. O rato comia a si mesmo enquanto fugia, para não ser devorado.
Deixando de lado os Jungs da vida, fiquei pensando na imagem de alguém que se mata para não sofrer o terror de ser morto. De alguém que foge de seu maior medo e se consome no processo, não só se paralisa, mas também se extingue. E não é exatamente isso que a maioria das pessoas faz o tempo todo? Se você tem algum exemplo em sua própria vida, fique à vontade.
O outro lado é que queijo, qualquer desenho animado pode confirmar, é o que o rato mais gosta. Qualquer criança sabe disso, e você sabe como as crianças sabem das coisas. O rato é feito daquilo que mais gosta, então existe um auto-amor implícito. Ele se ama ao ponto de dar dentadas em si mesmo. Então a fuga, mais uma vez, é auto-preservação ao ponto da autodestruição. Se você conhece alguém que sabota a si mesmo por puro terror do fracasso, fique à vontade.
Mas ainda existe um outro raciocínio. O rato é feito daquilo de que se alimenta. Exatamente como as personalidades. Todos nós somos feitos do que nos alimenta, nosso queijo é o que absorvemos do mundo. E isso, felizmente, é sempre escolha nossa. Se nos alimentamos da raiva que o mundo nos mostra, consumiremos esta raiva, e nos consumimos nela. Se nos alimentamos do amor, ele nos deixa mais fortes. Se somos amor, nos devoraremos a nós mesmos, nutrindo-nos do que somos, retroalimentação de divindade. Se somos aquilo de que mais gostamos, paramos de fugir como o rato. Nossos medos deixam de nos assustar.
E finalmente percebemos: gato não come queijo.

29.3.08



Passos de dança.

Gosto quando duas pessoas vêm na rua em sentidos opostos e param diante uma da outra, se atrapalhando de passar. Então os dois ficam dançando frente a frente, tentando prever a direção e se desviar. O mundo anda tão cheio de gente, é fácil de se ver. A maioria, cabisbaixa ou olhando para os próprios problemas, só percebe o outro quando já estão quase a se tocar.
Tem gente que ri. Eu gosto mais quando isso acontece.
Porque eu sei que, lá no fundo, nas dobras do inconsciente, aquela pessoa captou a lição que a vida camuflou nas dobras do seu dia-a-dia. Sutilmente revelando que além das fronteiras de si, existe o outro. Poeticamente mostrando que não estamos sozinhos e interferimos nos destinos uns dos outros o tempo inteiro − num bailado à revelia pelas ruas da cidade.

Tirando o pó da alma.

Cinco meses sem postar. Atualizando o espírito, atualizando os sonhos. Pausa para recomeçar.
Play it again, Sam.