25.3.10




Cafezinho.


Preto, com leite, com açúcar. Nada mais tipicamente brasileiro que o homem do cafezinho. Noctívago de profissão, percorre as ruas da cidade com seu carrinho repleto do mais prosaico dos hábitos. Que vai muito além do ato em si: um café é uma vontade, mas também um pretexto, um quase-nada de relaxamento do que quer que seja.

Ser homem do cafezinho é quase uma missão, um elemento crucial na logística das noites.

O carrinho sempre muito enfeitado, com rodinhas, adereços, bibelôs, firulas, cortinas, bandeirolas, texturas, com rádio, com forma de caminhão, com luzes, escudo do time. É como o destaque de uma escola de samba, onde o enredo exalta para sempre as alegrias da insônia e decreta a morte de Morfeu.

Ser homem do cafezinho é também um estilo de vida. Do bate-papo displicente no frio da madrugada, pleno de tempo e cheio de assunto. Do amor rápido nas escadas e garagens com as domésticas, acobertado pela conivência dos vigias. Do cigarro vendido, quando não dividido, aos companheiros de convívio, testemunhas do silêncio noturno onde até os semáforos parecem gritar as mudanças de sinal.

Mas logo vem a despedida, um até breve sem dores, que a espera termina no próximo pôr-do-sol. E lá vai o homem do cafezinho, levando em seu carrinho o calor no copo e o calor humano a quem quiser e precisar – distribuindo despertares pela noite afora.

19.3.10



Estaturas.


Meu avô era um homem grande. Do alto dos meus seis anos, ele parecia um gigante. Imponente com sua bengala e seu dente de ouro, o olhar azul-cinzento atravessando pessoas como se elas não existissem. Quando me olhava, estava sempre fitando um ponto além dos meus olhos. Encarando direto na alma. Ou visualizando meu futuro, não sei.

Meu avô usava um chapéu panamá cinza que, junto com a bengala, dava-lhe um ar de coronel, a austeridade postiça aumentando-lhe a estatura em uns bons oito centímetros. Seu silêncio e o sorriso dourado mostravam um homem orgulhoso e satisfeito com o mundo que ajudou a construir.

Quando ele morreu, eu estava lá. Vi o gigante diminuindo lentamente, definhando primeiro em sua cama, depois num leito de hospital. Os olhos mortiços que custaram a me reconhecer ainda buscavam o futuro, e não ver destino fazia com que se agarrasse à vida com todas as forças. Foram três meses de luta, ninguém esperava tanta força num homem tão velho. O coronel jamais se rendeu.

Alguém disse que crescer é ir se distanciando lentamente dos pés. Quando vejo alguém curvado pelos anos, completo o adágio e digo que envelhecer é reencontrar-se com o chão, a terra da qual todos viemos. Do pó ao pó, como dizem. Sob esta perspectiva, morrer não é desaparecer. É tornar-se maior – dissolver-se no universo.